Sophia de Mello Breyner Andresen

A forma justa

Sei que seria possível construir o mundo justo As cidades podiam ser claras e lavadas Pelo canto dos espaços e das fontes O céu o mar e a terra estão prontos A saciar a nossa fome do terrestre A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia Cada dia a cada um a liberdade e o reino - Na...

Regressarei

Eu regressarei ao poema como à pátria à casa Como à antiga infância que perdi por descuido Para buscar obstinada a substância de tudo E gritar de paixão só mil luzes acesas

Inicial

O mar azul e branco e as luzidias Pedras - O arfado espaço Onde o que está lavado se relava Para o rito do espanto e do começo Onde sou a mim mesma devolvida Em sal espuma e concha regressada À praia inicial da minha vida

A Fonte

Com voz nascente a fonte nos convida A renascermos incessantemente Na luz do antigo sol nu e recente E no sussurro da noite primitiva

As Fotografias

Era quase no inverno aquele dia Tempo de grandes passeios Confusamente agora recordados - A estrada atravessa a serra pelo meio Em rugosos muros de pedra e musgo a mão deslizava - Tempo de retratos tirados De olhos franzidos sob um sol de frente Retratos que guardam para sempre O perfume de pinhal...

Sobre um Desenho de Graça Morais

Nítido e leve ramo de oliveira: Rigeza firme do tronco As pálidas folhas como ponta de lança E o pequeno fruto negro Compacto e brilhante

O Búzio de Cós

Este búzio não o encontei eu própria numa praia Mas na mediterrânea noite azul e preta Comprei-o em Cós numa venda junto ao cais Rente aos mastros baloiçantes dos navios E comigo trouxe o ressoar dos temporais   Porém nele não oiço Nem o marulho de Cós nem o de Egina Mas sim o cântico da longa...

Sacode as nuvens

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos, Sacode as aves que te levam o olhar. Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.   Porque eu cheguei e é tempo de me veres, Mesmo que os meus gestos te trespassem De solidão e tu caias em poeira, Mesmo que a minha voz queime o ar que tu...

Promessa

És tu a Primavera que eu esperava, A vida multiplicada e brilhante, Em que é pleno e perfeito cada instante.

Eu chamei-te para ser

Eu chamei-te para ser a torre Que viste um dia branca ao pé do mar. Chamei-te para me perder nos teus caminhos Chamei-te para sonhar o que sonhaste. Chamei-te para não ser eu: Pedi-te que apagasses A torre que eu fui a minha vida os sonhos que sonhei.
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